O SEU PORTAL DE INFORMAÇÃO !

março 24, 2013

A menina do interior

Quando minha avó paterna via uma mulher com um estojo de manicure pronta para fazer as próprias unhas dizia: "Essa é das minhas". Sem tempo pra nada e com uma penca de filhos, a vaidade de dona Luzia tinha pouco espaço na rotina. Casou com o primeiro namorado, que um dia disse que ia ao bar e nunca mais voltou. A esposa ficou em Getulina, grávida, do décimo filho.
Vó Luzia criava galinhas e pouco viu, mas foi o mundo que criou os próprios filhos: sete homens e três mulheres. Anos depois vieram as notícias. O marido estava com sua "Pretinha", como chamava a nova mulher, que por ironia, não podia ter filhos.
Vó Luzia nunca disse, de sua boca, que comeu o pão que o diabo amassou. Nunca assinou o próprio nome e sua escola foi a vida. Nunca mais teve marido, namorado, cobertor de orelha ou um provedor. Conheceu a alegria vendo os filhos prosperarem, formarem suas famílias, ainda que isso custasse quilômetros de distância, já que a maioria escolheu São Paulo para ser gente na vida.
Vó Luzia ia sempre pra São Paulo. Na casa dos netos, animava-se em contar histórias antes de dormirem e a falta de habilidade chegava a ser engraçada porque no desejo de proteger os miúdos das maldades do mundo, descambava a falar sobre o homem do saco, mula sem cabeça e outras assombrações... Justo na hora de dormir.
Na cozinha sempre soube se virar e quando estava muito frio, depois que sovava o pão caseiro, corria pro quarto, cobria a massa com cobertor e o fechava no armário. Um tempo depois, mostrava a mágica: pão bem crescidinho.
No feijão, sempre uma folhinha de louro realçava o sabor dos grãos. Enquanto lavava a louça e fazia o cozido, eu sei, eu via, que vó Luzia adoçava o amargo da vida com a purinha que deixava debaixo da pia, coberta com um tecido de chita. Minha vó não perdia o prumo, nem o rumo, mas relaxava diante da vida quando dava o gole sorrateiro.
Nunca teve luxo, mas foi uma ascensão parar de lavar roupa na mina para enfrentar o tanque. Nunca viu um timer e nem por isso deixou o leite que fervia derramar, ainda que tivesse com filho pequeno na barra da saia, gente batendo na porta e areando as panelas. Era equilibrada e hoje ganharia status de resiliente, sem saber o significado.
O portão de casa era de madeira, fechado na tramela, assim como as janelas. Nunca usou cadeado e na sala um quadro de São Jorge dividia o cômodo com Nossa Senhora Aparecida, seus protetores de todas as horas. Sabia a erva certa para curar a dor alheia e nunca foi atrás de pensão ou direitos. A pressão alta, o diabetes e os problemas no coração tomaram as rédeas de sua vida. Tinha poucas amigas, pouco tempo para si e esperou, até o último dia por Noêmio, a quem prometeu e cumpriu amor eterno. A verdade é que minha vó foi uma grande mulher, mas para muitos, era só uma menina do interior.

Walkiria Vieira é jornalista do jornal NossoDia

Nenhum comentário:

Postar um comentário