Cavalo magro, parado na avenida, descansa. Cor cinza. Cor que sofre. Animal sofredor. Suas costelas saltam, parecem machucar a sua pele grossa e com pelos escasseando. Mas, na verdade, não são as costelas que saltam. É a pele que se aproxima cada vez mais do osso graças à ausência de gordura. Cavalo sofredor.
O peso do mundo em suas costas realmente parece muito pesado. O cavalo leva uma carrocinha de madeira podre quase se desmanchando, além da carga de papelão e outros produtos recicláveis. E tem também o seu dono, o dono do seu futuro, o dono do seu destino, a pessoa que um dia comprou ou encontrou um cavalo por aí, pagou ou não por ele e hoje o utiliza para o trabalho. Cavalo sofredor, cavalo escravo.
Uma mulher salta da carroça para trabalhar no recolhimento de lixos recicláveis. Não sei se ela é realmente a sua dona. Afinal, pode ser só mais uma escrava do dono do cavalo e dela. Sim, as mulheres conquistaram muitas coisas na contemporaneidade, mas ninguém há de discordar que ainda existem mulheres aos montes que permanecem sendo escravas, sexuais e de trabalho, dos homens. Mulher sofredora. Escrava? Talvez.
A vaidade morreu, para ela. A sua camiseta, que já foi branca, está encardida e, neste dia chuvoso e lambuzado, tudo o que se vê naquela mulher é a cor marrom clara, cor que sofre também. O que espera dessa vida a mulher escrava da pobreza, a galopar com seus papelões e com seu cavalo cor de tristeza? Aonde vão? De onde vieram? O que farão para sorrir, logo depois da jornada urbana e sacrificante, que deixa as vestes dela marrom e maltrata os cascos do pobre animal com costelas à mostra?
Se cavalos são escolhidos pelos dentes, aquele pangaré cinza será o último da fila. O seu sorriso também morreu, juntamente com sua dona e escrava. Cavalo sorri? Fico a me perguntar. Isso eu não sei, mas posso ter certeza de que aquela mulher, não. Mas, então por que o mundo sorri? Por que comemoram o crescimento do PIB? Por que ainda conseguimos seguir o caminho pelas ruas da cidade, com os nossos carros, sem sequer notar aquela dupla de sofredores, e muitas vezes deixando os pneus passarem em poças para jogar a água suja na camiseta branca daquela mulher?
Mas pode ser que a invisibilidade seja algo que a agrade. Se a vaidade morreu, se a sua camiseta esgarçada branca está marrom, se a chuva fina que cai em suas costas não incomodam, se as feridas daquele raquítico cavalo já não atacam de rancor o seu coração, se o seu sorriso nunca foi visto por ninguém da cidade, então pode ser que ela tenha se entregado à invisibilidade.
Mas eu consegui vê-la. E, desde aquele dia chuvoso, quando avistei o sofrimento de seres invisíveis, eu também resolvi tentar sumir. E hoje me tranco em casa morrendo de vergonha por viver sem muitos desconfortos e por saber que vai ser difícil sarar as chagas das patas do cavalo, precisa de muito pasto para suas costelas serem camufladas e jamais a camiseta esgarçada daquela mulher vai desencardir.
Wilame Prado
Crônica publicada dia 22 de março na coluna Crônico, do jornal O Diário do Norte do Paraná
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